terça-feira, 28 de abril de 2015

INICIAÇÃO NO JARDIM E INICIAÇÃO NA CIDADE


Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade
Excerto do capítulo Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade, da obra O Discurso de Sintra, de Rémi Boyer

«A Rosa-Cruz é o protótipo da Iniciação no Jardim, que se distingue da Iniciação na Cidade, da qual a Maçonaria é a expressão mais visível e a mais invasora. É no mínimo paradoxal, e até um contra-senso, que muitas sociedades iniciáticas construídas sobre o modelo hierarquizado da Maçonaria se reivindiquem da Rosa-Cruz.

Esta distinção, Iniciação no Jardim, Iniciação na Cidade, não deixa de lembrar a oposição clássica entre a filosofia do Jardim, de que a principal figura é Epicuro, e a filosofia na Cidade, incarnada por Platão, mas não pode ser reduzida apenas a esta oposição. Lembremo-nos também que Descartes – que não foi o único – quis negar que a Natureza fosse uma deusa. A Iniciação no Jardim não é cartesiana, mas também não afirma que a Natureza seja uma deusa; entre as duas, faz uma escolha por livre vontade de encantamento.

A Iniciação na Cidade assenta na pavimentação, no trabalho da pedra, na construção pedra sobre pedra, na repetição da forma, no seu apuramento, na sua rectificação com vista à edificação.

A Iniciação no Jardim é uma arte da tecitura, da malhagem, da trama, da criatividade, da mutação e da travessia das formas.

A replicação está no âmago da Iniciação na Cidade, que visa a permanência das formas, a sua duração, o seu prolongamento, a sua reprodução idêntica. Uma tal iniciação releva da imitação, mas voltaremos a este ponto. O que é antigo é celebrado. Este processo iniciático está inscrito na memória, na cultura na temporalidade. O processo iniciático posto em prática no Jardim é, pelo contrário, uma celebração do instante, do imediato, um reconhecimento do efémero, da impermanência e do intemporal. (…)

O Jardim é aberto, mas ao passo que o iniciado da Cidade se mostra e se demonstra, o iniciado do Jardim oculta-se. “Para vivermos livres, vivamos ocultos”, diz o Mestre Jardineiro. Ninguém sabe exactamente onde começa e onde acaba o Jardim. Ele manifesta a Liberdade que caracteriza o Ente em si. A errância é aí encorajada. No Jardim, não há objecto iniciático em si e objecto não-iniciático. Qualquer situação pode beneficiar de um tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna que importa, mas sim a relação de consciência mantida com a situação, que a torna a própria matéria da Obra. Privilegia-se a prática. “Se a doutrina te incomoda, rejeita a doutrina, mas aprofunda a prática”, sugere ainda o Mestre Jardineiro.  (…)

A aparente oposição entre a Cidade e o Jardim é o fruto do erro perceptual dualista. Convém substituir-lhe o princípio de uma articulação induzida pela própria etimologia da palavra “iniciação”, e instaurar assim uma dialéctica entre praxis e poiesis. A palavra “iniciação” provém do latim initiatio, que, por sua vez, na época greco-romana, traduzia a palavra grega telete. Enquanto a palavra initiatio expressa a ideia de passagem, telete veicula a ideia de finalização, de consumação. Enquanto initiatio se baseia na imitação e na repetição, que é o que fazem os ritos, telete assenta na “libertação da própria libertação”, usando a expressão de Nikos Kazantzaki. Qualquer via começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas sagradas que são os ritos, para penetrar o Grande Real.»

Fonte: Incoerismo